O Porto e o Recife

em História
09. 11. 01

Olinda & Recife II

 

Por: Leonardo Dantas Silva*

 

O Povo dos Arrecifes era coisa do passado. O primitivo porto, após a retirada dos invasores flamengos, veio a ser disputado até pelos governadores que teimavam em ocupar o Palácio de Friburgo, construído em 1642 pelo conde Nassau na primitiva ilha de Antônio Vaz, deixando de prestar assistência à sede da capitania, Olinda, motivando assim os reclamos junto ao rei de Portugal.

A riqueza súbita dos habitantes do Recife, apelidados de mascates pelos naturais de Olinda, fez do antigo porto um núcleo de progresso, por vezes ofuscando a capital de Pernambuco e contrariando os senhores da terra. Fato notório para comprovação de tal progresso seriam as construções religiosas do final do século XVII, algumas delas hoje consideradas verdadeiras jóias de nossa arquitetura colonial. É deste período o início das edificações das igrejas dos Jesuítas (1655), Nossa Senhora da Penha (1655), Santo Amaro das Salinas (1681), Convento do Carmo (1667), Capela Dourada (1696) e Ordem Terceira do Carmo (1696), na ilha de Santo Antônio, que, juntamente com as igrejas de Nossa Senhora do Pilar (1680-86, restaurada entre 1898 e 1906) e Madre de Deus (1679), são testemunhos de uma época de fausto e riquezas.

No governo de Sebastião de Castro Caldas (1707-1710), o primeiro governador nomeado por D. João V, de Portugal, possuidor de nítido partidarismo em favor dos mascates, para desgosto dos olindenses e da chamada nobreza da terra, foi o Recife elevado à categoria de Vila. Com o nome de Santo Antônio do Recife, por carta régia de 19 de novembro de 1709, foi instalada a nova vila. No Largo do Corpo Santo (Bairro do Recife), foi erguido o pelourinho, símbolo do poder municipal, em 15 de fevereiro do ano seguinte (substituído por outro de maior porte, em 3 de março do mesmo ano). Logo foram escolhidos os primeiros vereadores de sua Câmara, aos quais caberia a administração municipal, não se devendo mais obediência aos vereadores de Olinda.

A então Vila estava circunscrita às freguesias de São Pedro Gonçalves e Santo Antônio, área compreendida pelos atuais bairros do Recife, Santo Antônio e São José; pois as terras da Boa Vista ficaram sob a dependência da Câmara de Olinda até a primeira metade do século XIX.

No século XVIII a influência econômica e política da capitania de Pernambuco se faziam presentes do Ceará até a foz do Rio São Francisco, transformando o Recife no principal porto exportador e importador de riquezas. Em torno do núcleo portuário, já então unido ao continente pelas imensas pontes construídas pelo Conde de Nassau (1643), cresceu o centro econômico da capitania reunindo no Recife um grande comércio, responsável pelo abastecimento de toda região. Através do Recife eram exportados o açúcar, o fumo, as peles, o algodão, o pau-brasil e outras riquezas produzidas pelas capitanias do Norte. Em contrapartida, ingressava pelo mesmo porto a maior parte dos bens consumidos, não somente no Recife e Olinda como nas mais remotas comunidades rurais, o que fazia movimentar o grande comércio e a pequena navegação de cabotagem, em atividade até a primeira metade do século XX.

Enquanto a nascente Vila de Santo Antônio do Recife prosperava, transformando-se no centro de maior comércio da região, a cidade de Olinda permanecia como que parada no tempo. Graças ao movimento constante de carga e descarga do seu porto, com a presença de navios que se destinavam não somente à Europa como também à África e até às Índias, a antiga povoação dos Arrecifes transformara-se na capital econômica da poderosa capitania de Pernambuco.

Olinda, por sua vez, jamais voltou a dispor do seu status de capital dos tempos que antecederam ao incêndio de 1631, transformando-se com o passar dos anos na sede administrativa de Pernambuco. Nela se encontravam o Palácio dos Governadores (séc. XVII) e o Senado da Câmara, a catedral do Salvador do Mundo (1540) e o Bispado (1677), o Hospital da Santa Casa de Misericórdia (1540) e a Cadeia Eclesiástica (Aljube), o Colégio dos Jesuítas (1568) e o Horto Botânico, o Seminário Diocesano (1800), assim como os conventos sedes das principais ordens religiosas – Franciscanos (1885), Carmelitas (1588) e Beneditinos (1592) –, e o Curso Jurídico, que veio a funcionar, entre 1828 e 1854, nas salas do Mosteiro de São Bento.

Com a abertura dos portos às nações amigas pelo Príncipe Regente Dom João, em 1808, o porto do Recife, que segundo Henry Koster possuía uma população de cerca de 25.000 habitantes, veio a se tornar de maior movimento comercial da colônia, chegando a exportar no ano seguinte 12.801 caixas de açúcar. Os altos preços obtidos por este produto, que em 1817 atingiu a quantia de 17 francos a arroba, e pelo algodão, “então com um aumento de 500 por cento”, fez surgir na província grandes fortunas e um maior intercâmbio com os Estados Unidos e a Europa.

Ao contrário do século XVIII, o século XIX é detentor de uma rica iconografia do Recife, Olinda e seus arredores. Talvez seja esta a parte do Brasil mais retratada pelos artistas, que aqui estiveram, a exemplo de Alberto Gabriel Frederico Secretan (1793-1852), um suíço de Lausanne que aportou no Brasil em 1827, demorando-se no Recife e em Salvador, chegando ao Rio de Janeiro em 5 de janeiro de 1836 onde faleceu em 1852. É dele a autoria da primeira litografia executada no Recife, datada de 1827 sob o título "Vista do Farol e do interior do Porto de Pernambuco tomada do Poço".

Também viajantes eram surpreendidos com o panorama oferecido pelo Recife e Olinda. O mais importante deles seria Henry Koster, autor do clássico Travels in Brazil (Londres 1816), no qual publica várias paisagens do Recife, do interior e um Plano do Porto de Pernambuco (160/233 mm.), gravado por Sidney Hall. Outros viajantes preocuparam-se em retratar as belezas do Recife, Olinda e interior, a exemplo de Spix e Martius (1817), James Henderson (1816), L. F. de Tollenare (1817), Maria Graham (1821), que documentou a ilha dos Cocos e o Arco do Bom Jesus; do marinhista inglês Emeric Essex Vidal (1791-1861), que documentou em aquarelas a entrada do porto (1827), além de outros anônimos.

Com o passar dos anos, através de aterros dos terrenos de alagados e de cursos d’água, foi o Recife crescendo em área, muito embora, somente em 1817, por provisão de 6 de dezembro, foram desmembrados do termo de Olinda o atual bairro da Boa Vista e a povoação dos Afogados.

Em 1823 foi o Recife promovido à categoria de Cidade, por Carta Imperial de 5 de dezembro, seguindo-se de sua elevação à Capital de Pernambuco, através de Resolução do Conselho Geral da Província datada de 15 de fevereiro de 1827.

Através de resoluções posteriores da presidência do Conselho da Província, foram unidas ao território do Recife as freguesias da Várzea e do Poço da Panela, bem como o restante da Boa Vista. Em 1862, o município do Recife era composto pelas freguesias de São Pedro Gonçalves, Santo Antônio, São José, Boa Vista, Afogados, Muribeca, Poço da Panela, Várzea, Santo Amaro do Jaboatão e São Lourenço da Mata; estas duas últimas transformadas em município autônomo em 1873 e 1884.

Durante a República o município do Recife permaneceu com o seu território inalterado até 1919, quando, no governo de Manoel Antônio Pereira Borba, o Congresso Legislativo do Estado de Pernambuco, pela Lei n.º 1430, sancionada em 10 de junho de 1919, estabeleceu os novos limites com o município de Olinda. Por aquele diploma legal estabeleceu-se uma linha divisória a partir da fortaleza do Buraco, “do marco subterrâneo colocado na raiz do molhe que nasce no istmo de Olinda e limita a bacia do porto, por uma linha imaginária à ponte da Tacaruna” [....] “até alcançar o marco divisório das propriedades Piaba e Jardim, próximo à margem do rio Paratibe; sobe, em seguida, o curso deste rio até a foz do riacho Cova da Onça, daí acompanhando os limites da propriedade desse nome até o marco do córrego Riacho Seco, ponto terminal da divisória dos dois municípios.”

Ainda nas confrontações e limites, a lei estadual n.º 1430, anteriormente citada, preceitua em seu artigo segundo: “Os terrenos que, atualmente, pertencem a um dos municípios [Recife ou Olinda] e que por este ato passam para o outro, serão considerados ipso-facto entregues a cada um dos municípios para o qual foram transferidos, independentemente de mais formalidades, desde que for publicada a presente lei.”

A última modificação de limites do Recife ocorre em 1928, quando a Lei nº 1931, de 11 de setembro, que trata da nova divisão administrativa do Estado de Pernambuco, estabeleceu em seu artigo 3º o acréscimo do território do município do Recife “pela anexação que lhe é feita dos distritos de Beberibe e do Arruda e os territórios do povoado de Coqueiral e de toda vila de Tejipió, excetuada a parte denominada de Sycupira, os dois primeiros desmembrados do município de Olinda e os dois últimos do de Jaboatão”.

Olinda, de onde se vê...

Ao longo dos séculos, porém, Olinda, com a sua paisagem tecida de sonho e claridade, impregnada pelas diversas tonalidades de verde, nas águas do seu mar, e de azul e outras cores no crepúsculo do seu céu, foi o eterno fascínio de todos que a conheceram. Enquanto o Recife reunia atenções pela sua importância econômica, Olinda reservava aos viajantes o deleite de sua paisagem litorânea, povoada de jangadas e outros tipos de embarcações, sendo hoje fonte de deleite e de paz para recifenses e olindenses.

O primeiro a escrever sobre a importância de tal paisagem foi Joaquim Nabuco, quando vista do terraço da igreja da Sé, “o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humanas!”.

O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo em um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância...

Em sua descrição, publicada no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), em sua edição de 30 de novembro de 1887, Joaquim Nabuco, pinta, com a mão de um mestre, as belezas do seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta.

... Não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão abaixo aos pés do espectador, que perde o movimento e a vida, parecendo uma tela diáfana estendida sobre o fundo vazio do ar, vistas em profundidade, que dão vertigem e nas quais a perspectiva é tão longínqua como se víssemos por um óculo virado. A vista de Olinda é outra; é uma vista em comprimento, em que os planos sucedem-se uns aos outros como o desenvolvimento da mesma sensação visual, em que desde Olinda até ao Recife, e mais longe até o Cabo de Santo Agostinho, o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humanas!

Com Joaquim Nabuco, concorda quem melhor pôde apreender as cores desta paisagem, o poeta Carlos Pena Filho, para quem Olinda é possuidora não somente de nuances mas de profundos mistérios.

Olinda é só para os olhos,

não se apalpa, é só desejo.

Ninguém diz: é lá que eu moro.

Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,

a não ser quando se sai.

Não porque antes se visse,

mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem

no olhar, quando em existência.

Diluídas, evaporadas,

só se reúnem na ausência

Mas lá longe, olhando-se em direção do Sul, espraia-se na nossa visão a Cidade do Recife, ocupando uma área de 221 quilômetros e 471 mil metros quadrados desta planície, formada pelas terras de aluvião trazidas pelo delta dos rios Capibaribe, Beberibe, Jiquiá e Jaboatão, bem como pelos constantes aterros promovidos pela mão do homem ao longo desses últimos quatro séculos.

O Recife tem seu centro urbano constituído por três ilhas: a do Recife, a de Santo Antônio e a da Boa Vista, as quais se interligam com o continente, através de pontes que são como braços a unir toda a cidade. A sua condição de planície tropical, refrescada pelos ventos alísios que nos chegam do Atlântico, sem registro de grandes temperaturas, estiada na maior parte do ano, com o eterno fascínio das praias de água morna, transforma a capital de Pernambuco num eterno convite para passeios a pé, nos quais o caminhante ganha as ruas sem maiores compromissos, gozando do cenário de suas pontes e da beleza dos seus monumentos, como a repetir os versos do poeta Ledo Ivo:

Amar mulheres, várias

Amar cidades, só uma – Recife.

E assim mesmo com o vento amplo do Atlântico

E o sol do Nordeste entre as mãos.



* Olinda & Recife II

Leonardo Dantas Silva

Do Instituto Ricardo Brennand